Wagner Claro
(Professor de Escola Bíblica e Membro da Igreja Adventista da Promessa em Carapina, Serra ES)
INTRODUÇÃO
1 Samuel 16:14,15 – E o Espírito do SENHOR se retirou de Saul, e atormentava-o um espírito mau da parte do SENHOR. Então os criados de Saul lhe disseram: Eis que agora o espírito mau da parte de Deus te atormenta;
Quando nos deparamos com textos bíblicos como este, e com o texto de 1 Reis 22:21-23 que diz que o Senhor pôs o espírito de mentira na boca dos profetas para que pudessem induzir o rei Acabe à guerra, a fim de matá-lo, ficamos estarrecidos com a revelação bíblica encontrada nestes textos.
Todos nós temos uma ideia formada a respeito de Deus, bem como a respeito do diabo e de como cada um deles age e de qual é a natureza que cada um possui. De repente nos vimos diante de textos bíblicos que parecem nos sugerir que Deus se utiliza de demônios para cumprirem seus desígnios, ou seja, que os demônios são, pelo menos em alguns momentos, servos de Deus.
Também nos deparamos com interpretações mais ousadas que dizem que o próprio Deus pode fazer o mal, como bem lhe aprouver, uma vez que está nas mãos dEle o poder para fazer qualquer coisa. Existem, inclusive, textos que dizem que de Deus pode vir o bem e o mal, como os dois textos que apresento abaixo:
Jó 2:10 – Porém ele lhe disse: Como fala qualquer doida, falas tu; receberemos o bem de Deus, e não receberíamos o mal?
Lamentações 3:38 – Porventura da boca do Altíssimo não sai tanto o mal como o bem?
No caso específico de Saul, o texto afirma que o espírito mau que o atormentava era “da parte de Deus”. Em uma simples interpretação, o correto seria dizer que Deus foi quem enviou esse espírito mau para atormentar a Saul.
Sendo o caso de Saul um flagrante caso de possessão demoníaca, então o texto parece sugerir que Deus se utiliza de demônios para executar Sua vontade contra a vida de alguém.
Quero apresentar minha tese, clara e direta, e sobre ela discorrer a seguir:
Na minha opinião Deus não se utiliza de demônios para executar Sua vontade contra a vida de alguém.
DEFENDENDO ESTA TESE
1º – No Antigo Testamento o conceito que os judeus tinham do mal era que ele não existia de forma personificada e autônoma em relação a Deus. Ou seja, a visão hebraica era “MONISTA” e não “DUALISTA”. Na visão “dualista” o mal e o bem são realidades diferentes de origens distintas e antagônicas em poder. Na visão “monista” dos hebreus, o diabo não existia como um ser pessoal, inimigo de Deus. Eles entendiam que toda ação, fosse boa ou má, provinha de Deus. Se a ação fosse boa, era a revelação da bondade divina. Se a ação fosse má, era Deus castigando, punindo ou advertindo alguém.
Desta forma, e em função deste entendimento, o escritor antigo testamentário registrava os acontecimentos de acordo com o entendimento que tinha. Ao ver Saul endemoninhado, ou atormentado por um espírito mau, registrava que aquele espírito mau era um castigo enviado por Deus em razão dos seus muitos pecados.
O registro de um acontecimento, de acordo com a ótica do escritor não deve ser entendido como “revelação”. Não devemos dizer que “o espírito mau era da parte do Senhor sim, porque está escrito na Bíblia”, mas, que, o escritor bíblico registrou o que viu ou o que soube de acordo com o entendimento que tinha do assunto, ou seja, ele achava que aquele espírito mau era da parte do Senhor.
A interpretação bíblica precisa levar em conta e conseguir distinguir o que é “revelação” e o que é registro da opinião do escritor ou da opinião corrente na época em que o texto foi escrito. Uma coisa é o que o texto diz e outra coisa é o que a teologia bíblica diz.
Neste caso não existe contradição entre o texto e a teologia bíblica, uma vez submetida ao escrutínio da análise contextual, objeto de estudo da exegese.
2º – Quando estudamos a natureza de Deus e de seus anjos e, a natureza do diabo e de seus demônios, encontramos uma total incompatibilidade em ambas naturezas. Em termos bem simples sabemos que Deus é bom, é puro, é luz. Enquanto isso, está impregnada na natureza dos demônios as trevas, a maldade e a impureza. Ou seja, a natureza de um é exatamente o oposto da natureza do outro.
Além disso, a Bíblia revela que o diabo, apesar de já ter sido um anjo de Deus, criado por Ele, tornou-se adversário, um inimigo declarado de Deus. Ambos habitam em regiões diferentes e se opõem um ao outro.
Dentre as características que encontramos nas descrições bíblicas sobre os demônios, a que mais se destaca é a REBELDIA. A rebelião foi exatamente o pecado que destituiu o anjo de luz de sua habitação celestial e o tornou inimigo de Deus. O diabo, bem como os seus demônios, têm em sua natureza, o propósito único e exclusivo, contrariar a Deus em tudo o que fazem. Eles não fazem nada, absolutamente nada, para agradar a Deus. Eles odeiam a Deus e não há nada neles que permite parceria.
QUANTO AO ESPÍRITO DE MENTIRA EM 1 REIS 22
Então, não sendo possível a parceria entre Deus e os demônios, como aceitar a presença de um demônio entre os anjos, em uma reunião celestial, como a descrita em 1 Reis 22, na visão do profeta Micaías, sem manchar a reputação do Senhor, o Deus em quem não há engano nem sombra de variação? Tg 1:17 . – IMPOSSÍVEL!
Se não foi um espírito demoníaco, certamente foi o próprio Espírito do Senhor, que apresentou uma proposta a fim de solucionar a questão posta pelo Pai.
Espírito, em hebraico é rúah. Nesta eferência, nos textos mais antigos o artigo definido “o” aparece antes derúah, assim a palavra que aparece nos originais é hãrúah, indicando que aquele espírito era o Espírito do Senhor, o único capaz de operar o plano divino. Por alguma razão os tradutores omitiram ou não tiveram coragem de fazer a tradução correta e assim traduziram como “um espírito”.
A expressão “espírito de mentira” deve ser melhor interpretada como uma atribuição funcional, ou seja, “mentiroso” não descreve a natureza do espírito, mas retrata sua função na execução da proposta de divina. Ele é um “espírito de mentira”, não no sentido ontológico ou ético, ou porque ele é uma entidade demoníaca ao serviço do Senhor, mas, no sentido de que ele induziria os falsos profetas, que já estavam sob a influência do mal, para que incentivassem o rei Acabe a caminhar para o fim que lhe cabia, do qual era merecedor.
3º – Aquele demônio que atormentava Saul não sairia com o toque da música de Davi, se o demônio tivesse sido enviado por Deus. Quando Davi foi escolhido para socorrer a Saul, foi dito dele que “Deus era com ele” e que por isso, ao tocar a harpa, por causa da presença de Deus na vida de Davi, o espírito mal deixaria de atormentar a Saul. Seria uma contradição Deus enviar um demônio e depois enviar Seu Espírito Santo para aplacar a ação desse demônio que Ele mesmo enviou. E, por que aquele demônio voltaria a atormentar a Saul repetidas vezes, se já havia sido repreendido pelo Espírito do Senhor?
CONCLUSÃO – Portanto, fica evidente que de Deus não procede o mal, no sentido de que Ele o tenha gerado ou que nele tenha prazer. Quando a Bíblia diz que ‘da boca do Altíssimo sai tanto o mal quanto o bem”, não significa que Ele é a fonte da maldade, tanto quanto é a fonte da bondade. Cada palavra deve ser interpretada dentro do seu contexto.
> Tiago 1:13 – Ninguém, sendo tentado, diga: De Deus sou tentado; porque Deus não pode ser tentado pelo mal, e a ninguém tenta.